quinta-feira, 13 de agosto de 2009

PEAM3 – Prática de Ensino e Aprendizagem Musical 3

UAB/UnB

Algumas histórias da Educação Musical no Brasil

Flávia Motoyama Narita


Desde a chegada dos jesuítas, logo após a descoberta do Brasil pelos portugueses, até sua expulsão, em 1759, a educação musical implementada por eles estava fortemente relacionada à religião, com o objetivo de catequização. “O trabalho dos jesuítas trouxe práticas musicais europeias para a colônia, que eram empregadas como meio facilitador da educação em geral” (OLIVEIRA, 2007a, p. 5). Dessa forma, estilos musicais europeus e repertório semelhante ao escutado em Portugal eram difundidos no Brasil. Os Autos, por exemplo, eram utilizados na catequização, resultando em orquestras compostas por índios e escravos na Bahia, a primeira capital do país (OLIVEIRA, 1993, p. 31).

No século XIX, após a independência do Brasil, temos a criação de instituições nacionais de música, como o Conservatório de Música do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Ainda adotando modelos europeus, o “currículo de música do Conservatório incluía voz e solfejo, instrumentos de cordas, instrumentos de sopro de madeira e metais, harmonia e composição” (OLIVEIRA, 2007a, p.6). Segundo Fuks (1993, p. 144), nessa época, “ao mesmo tempo em que nos salões da burguesia em ascensão ouvia-se e tocava-se música europeia, a escola, acompanhando o que a rodeava, cantava cançonetas italianas e francesas”.

Já no século XX, principalmente após a Primeira Guerra Mundial, as ideias nacionalistas são refletidas no repertório de canções patrióticas presentes nas escolas brasileiras. “Na década de 1920, a instituição absorveria o novo modernista e (...) o reproduziria na forma de duas metodologias musicais – o canto orfeônico e a iniciação musical” (FUKS, 2007, p.21). Esta última, liderada por Sá Pereira e Liddy Chiaffarelli Mignone, apresentou influências de “metodologias progressistas de Dalcroze, Orff, Kodály e, mais tarde, Willems, e eram organizados, principalmente, em escolas especializadas no ensino de música, e não nas escolas regulares” (FUKS, 1991 apud OLIVEIRA, 2007a, p.6).

Na Era Vargas, o Decreto 19.890 de 1931 prescreve Música (canto orfeônico) também para o ensino secundário e cria-se a Superintendência de Educação Musical e Artística, posteriormente denominada Serviço de Educação Musical e Artística (SEMA), com Villa-Lobos na direção. Os objetivos dessa educação musical, segundo Villa-Lobos, eram desenvolver a disciplina, o civismo e a educação artística (FUKS, 2007, p. 19). No Estado Novo,

[a] educação passa a ser utilizada como instrumento político para o controle do Estado, ou seja, um instrumento de doutrinação política. A utilização do sistema escolar como mecanismo de difusão ideológica visa não só inculcar a ideologia que legitimava o ‘Estado Nacional’, mas também impedir que surgissem ideologias alternativas. (SOUZA, 2007, p. 14) .

Os reflexos dessa política na educação musical são percebidos na utilização da música como meio de estabilização do regime Vargas, com o foco na disciplina, “militarização da educação” com a contribuição da música e formação de uma consciência nacional (ibid., p. 15-16). Para atender à demanda nacional, era necessária a formação de professores, que foram encaminhados para participar de cursos rápidos (de férias), com duração de apenas um mês.

Com o fim do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial, temos o movimento da criatividade, “inspirado pelas pedagogias centradas na infância, que salientavam o papel da criança no processo de aprendizado” (OLIVEIRA, 2007a, p. 6). Aliado à estética musical contemporânea, que abarca uma variedade de materiais sonoros, este movimento criativo teve como referências compositores contemporâneos como John Paynter (na Inglaterra), Murray Schafer (no Canadá) e Koellreutter (alemão radicado no Brasil). Entretanto, também encontravam-se no grupo em prol da criatividade, os professores egressos dos cursos rápidos que, segundo Fuks (1993, p.146), “entregavam-se a essa nova proposta pedagógica que se prestava muito bem para encobrir a ausência de conhecimentos específicos.” Assim, pode-se dizer que se por um lado havia “uma visão bem argumentada de que, na composição, as crianças estão aprendendo a lidar com e compreender a música, incluindo a do século vinte” (SWANWICK, 1993, p. 24); por outro, havia também uma compreensão equivocada de que esse movimento representasse experimentações sonoras sem objetivo visando à auto-expressão, onde tudo era permitido e, por isso, qualquer professor, mesmo aquele sem conhecimentos específicos, poderia orientar as práticas musicais.

O regime militar (1964-1985) sufoca este e outros movimentos, além de impor a Lei 5692, de 1971, que institui a polivalência a substitui a música pela educação artística, muitas vezes baseada em uma falsa integração entre as artes. Com isso, os professores foram obrigados a abordar conteúdos de outras artes, sem terem a formação específica adequada para se aprofundar em cada uma delas, resultando em atividades superficiais como “pintar a música”, “explorar sons de cores e paisagens”, “dançar poesias” e “dramatizar canções e peças musicais”
(TOURINHO, 1993, p. 110-111). Além disso, verificamos que música não consegue se inserir plenamente neste cenário, figurando muitas vezes como pano de fundo para outras atividades artísticas.

O fato é que a música não consegue se inserir de modo significativo nesse espaço, e a prática escolar da Educação Artística, que se diferencia de escola a escola, acaba sendo dominada pelas artes plásticas, principalmente. Vale lembrar que inúmeros livros didáticos de Educação Artística, publicados nas décadas de 1970 e 1980, apresentam atividades nas várias linguagens – artes plásticas, desenho, música e artes cênicas –, embora com predominância das artes plásticas. Além disso, é essa a área em que a maior parte dos cursos – e conseqüentemente dos professores habilitados – se concentra, de modo que, em muitos contextos, arte na escola passa, pouco a pouco, a ser sinônimo de artes plásticas ou visuais. E isso persiste até os dias de hoje ... (PENNA, 2004a, p.22)

Assim, a Lei 5692/71, com a substituição da disciplina curricular “Música” pela “Educação Artística”, acarretou em práticas escolares difusas, confusas e superficiais. Para a área musical, representou também uma tendência a silenciar práticas musicais nas escolas e, com isso, sua exclusão no currículo escolar. Nogueira (1997, p. 14) ainda alerta que essa Educação Artística não serviu aos propósitos de propiciar práticas musicais que pudessem, eventualmente, capacitar os alunos ao ingresso ao ensino profissionalizante de música.

A polivalência provou ser bastante nefasta ao ensino escolar, especialmente para a área de música. Somente a partir da nova LDB 9394/96, e através das recomendações dos PCN’s, o ensino de Arte passa a tornar-se especializado, ao menos formalmente. Porém, os problemas ainda são muitos. (OLIVEIRA, 2007b, p. 54-55)

Em 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9394 estabelece em seu Artigo 26, § 2º que “o ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (BRASIL, 1996). Entretanto, como não se estabelece qual arte, ou quais artes devem estar presentes na grade curricular, verificamos que muitas vezes a música, que já vinha com presença diminuída desde a Lei 5692/71, continuou excluída da grade escolar, apesar da existência de documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que apresentam recomendações de como se trabalhar com a prática musical nas escolas. Como Penna (2004b, p. 9) aponta,

constata-se a permanência da polivalência como concepção e prática pedagógica no campo das artes, polivalência essa que acompanhou a implantação da Educação Artística e mantém-se como uma leitura possível dos PCN para Arte (cf. Penna, 2004[a]). Desse modo, apesar da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 e das propostas dos Parâmetros, no universo investigado – e certamente não apenas nele – o ensino de música continua submetido ao campo múltiplo da Arte, com uma presença frágil e inconstante na prática
escolar, muitas vezes nas mãos de professores sem formação específica. (PENNA, 2004b, p.9)

Essa “presença frágil” da música como um dos componentes da Arte, vem suscitando debates e movimentação de várias pessoas envolvidas com a música. A articulação de várias entidades relacionadas à música resultou em um movimento em prol da inclusão da música como componente curricular na Educação Básica. Em um manifesto datado de setembro de 2006, solicitava-se:
- a garantia de um espaço legal para o ensino da música nas escolas de educação básica;
- a implementação gradativa do ensino de música nas escolas de educação básica;
- a elaboração de concursos públicos com mais vagas específicas na área de música, tendo em vista que resultados de trabalhos realizados em diferentes estados do país sugerem que são escassos os professores de música nas escolas de educação básica, bem como práticas sistematizadas de ensino musical; e
- a construção de projetos de formação musical e pedagógico-musical continuada para os professores em serviço na educação básica. (MANIFESTO)

Além da redação desse manifesto, o Grupo de Articulação buscou apoio de outras entidades musicais, artistas, estudantes e profissionais da área, coletando mais de 2300 assinaturas. Em novembro de 2006, o manifesto foi entregue em audiência pública no Senado, donde surgiram Projetos de Lei (PL) baseados no texto do referido manifesto. Durante todo o ano de 2007, o PL 330/2006 tramitou na Comissão de Educação do Senado Federal e teve sua aprovação em 4 de dezembro de 2007 (MANIFESTO).

Em 2008, o PL tramitou na Câmara dos Deputados e, após aprovação, foi sancionado pelo Presidente da República, tornando-se a Lei 11.769 de agosto de 2008. Esta Lei alterou o Artigo 26 da LDB 9394/96 com o acréscimo do § 6º, estabelecendo que “[a] música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o § 2º deste artigo” (BRASIL, 2008). Essa mesma Lei estabelece ainda que os sistemas de ensino terão três anos letivos para se adaptarem a essa exigência. Temos, então, uma grande vitória com a inclusão da música como disciplina curricular.

Entretanto, o veto ao Artigo 2º, que propunha o ensino de música ministrado por professores com formação específica na área, causou algumas frustrações entre os educadores musicais. Com relação a isso, o professor Sérgio Figueiredo, atual presidente da Associação Brasileira de Educação Musical – ABEM, declara:

O segundo parágrafo do veto parece lógico, na medida em que nenhuma área tem esta indicação na LDB, o que seria um precedente dentro do que diz a lei para todas as áreas do currículo. O problema foi o primeiro parágrafo do veto que estabelece uma grande confusão, já que menciona o artigo 62 da LDB, que trata da formação em nível superior em curso de licenciatura para atuação na educação básica, e ao mesmo tempo considera a possibilidade de pessoas sem titulação poderem atuar na escola com a área de música. (ABEM, 2008)

Figueiredo acrescenta ainda a importância de dialogarmos com as Secretarias e Conselhos de Educação para se adequar legislações específicas para cada contexto. Segundo Figueiredo, “em Florianópolis existe legislação específica sobre a contratação de professores com curso superior para todas as áreas, incluindo os professores das séries iniciais que a lei faculta não terem a formação superior” (ABEM, 2008). Ou seja, este é um exemplo de que é possível ter aulas de música com professores habilitados, garantido por Leis municipais.

Outro ponto levantado pelo presidente da ABEM é com relação à parceria entre as universidades, com seus cursos de licenciatura, e as Secretarias de Educação. A formação de licenciados em Música e a obrigatoriedade do ensino da música em toda a Educação Básica certamente fomentarão políticas para a inserção dos licenciados no mercado de trabalho e demandarão estratégias para a implementação da Lei de forma efetiva (ibid.).

Diante desse enário, faz-se necessário refletirmos sobre as práticas pedagógico-musicais apresentadas neste curso de formação de professores. De acordo com o Projeto Político Pedagógico deste curso de Licenciatura em Música da UAB/UnB, elaborado pelo Grupo de Educação Musical (GEM1) do Departamento de Música da Universidade de Brasília, espera-se que o contato com práticas musicais reais, vivenciadas em diferentes contextos, propicie a formação do músico e professor criativo, capaz de refletir na ação e sobre a ação para promover, com seus alunos, práticas com envolvimento direto com o fazer musical por meio da integração entre as modalidades de criação, execução e apreciação. Espera-se também que esse músico-professor em formação reconheça a diversidade de experiências e identidades de seus alunos e valide os variados tipos de músicas (de seus alunos, suas, de outras culturas, de concerto, popular etc.) bem como as diferentes experiências de aprendizagem (informais, formais, não-formais). Com isso, espera-se que os alunos egressos deste curso de licenciatura em Música possam contribuir ativamente no atual cenário da educação musical, promovendo práticas pedagógico-musicais com musicalidade e qualidade.

Após este breve panorama sobre algumas das histórias da educação musical no Brasil, apresentaremos durante a disciplina textos selecionados para ilustrar outras histórias com práticas pedagógico-musicais realizadas em contextos diversos. Concepções de pedagogia musical serão apresentadas juntamente com discussões sobre legislação e pesquisas desenvolvidas na área de Educação Musical.


Referências Bibliográficas:
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obrigatoriedade do ensino de música na escola, 2008. Disponível em: http://www.abemeducacaomusical.org.br/noticias7.html. Acesso em 13/jul/2009.

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13/jul/2009.


O Grupo de Educação Musical (GEM) do Departamento de Música da Universidade de Brasília é formado pelas professoras Cristina Grossi, Flávia Narita, Maria Cristina C.C. Azevedo e Maria Isabel Montandon. _______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº11.769/2008. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=257518. Acesso em 13/jul/2009. FUKS, Rosa. Transitoriedade e Permanência na Prática Musical Escolar. In: Fundamentos da Educação Musical. Série Fundamentos, nº1, Associação Brasileira de Educação Musical, Porto Alegre, maio, 1993, pp. 134-156. _______. A Educação Musical da Era Vargas: Seus Precursores. In: OLIVEIRA; CAJAZEIRA (Orgs.) Educação Musical no Brasil. Salvador: P&A, 2007a, capítulo 3, p. 18-23.
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